‘A partir do 2º turno do Brasileirão, VAR centralizado estará 100%’, diz Gaciba

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O Campeonato Brasileiro terá em sua terceira temporada com árbitro de vídeo uma novidade: atuação centralizada, com todas as cabines de VAR sendo operadas no Rio de Janeiro. A mudança, inspirada na Copa do Mundo da Rússia e nos jogos da NBA, permitirá que os operadores do sistema tenham um feedback mais rápido junto à Comissão de Arbitragem e facilitará o treinamento dessa ferramenta que tem se mostrado imprescindível e polêmica na mesma proporção.

A mudança para o VAR centralizado, porém, não será vista neste final de semana, quando começa o Brasileirão. Na verdade, será preciso ainda esperar algumas meses até que isso ocorra. “Dá para garantir que, a partir do segundo turno, estaremos com essa operação 100%”, disse o presidente da Comissão de Arbitragem da CBF, Leonardo Gaciba, ao Estadão.

Gaciba recebeu a reportagem na sede do novo Centro de Excelência da Arbitragem Brasileira (Ceab), instalado a pouco mais de 100 metros da sede da CBF, na Barra da Tijuca. O local ocupa uma área de 600 metros quadrados e, além de dez cabines para árbitros de vídeo, conta com auditório para treinamento de árbitros e algumas salas. O espaço ainda não foi inaugurado oficialmente – ele aguarda a chegada de parte dos equipamentos para que o sistema centralizado do VAR possa ser colocado plenamente em operação.

Assim, o Brasileirão começará, em parte, da mesma forma como terminou, com cada estádio do Brasil tendo sua própria cabine do VAR. O que Gaciba espera é que se mude a postura de dirigentes e de comissões técnicas. Reclamações consideradas excessivas, inclusive aquelas vindas de cartolas nas arquibancadas, agora irão para a súmula. “Vamos ter um delegado do departamento de Competições da CBF que vai estar atento e vai relatar ao árbitro acontecimentos fora do comum. O tribunal (STJD) já foi avisado”, disse Gaciba.

Sobre o quadro de arbitragem do País, o chefe da arbitragem brasileira exaltou o fato de a CBF contar atualmente com o maior quadro de árbitros Fifa do mundo – considerando árbitros centrais, auxiliares, de vídeo e feminino. Confira os principais trechos da entrevista.

A CBF irá implantar o VAR de forma centralizada no Brasileirão. Qual a previsão de início?

Dá para garantir que, a partir do segundo turno, estaremos com essa operação 100% (centralizada). O presidente Rogério Caboclo diz que em primeiro lugar a gente tem que levar em conta a segurança e a precisão. Então, antes vamos fazer todos os testes, online aqui (no Ceab) e offline nos estádios, com backup.

Qual a vantagem disso no uso da ferramenta?

Acho que o mais importante de ter o VAR centralizado é o fato de eu poder ter todos os árbitros que trabalham em uma rodada no mesmo lugar, podendo ter feedback instantâneo do trabalho junto com a comissão (de arbitragem). Hoje nós temos uma cabine em cada local do Brasil, e fica mais difícil desse contato olho no olho. Afora isso, tem o treinamento e a preparação da nova geração do árbitro de vídeo. Será possível ter uma cabine operando de forma online, com o jogo valendo, e ao lado um menino, um jovem, que está começando, operando offline o mesmo jogo. Ao término da partida eu posso comparar o trabalho dele para ver qual o nível que se encontra esse árbitro que está começando.

Para ficar claro: cada jogo continuará tendo sua própria cabine e a sua própria equipe de arbitragem, correto?

Exatamente. Nós teremos dez VORs (Video Operation Rooms) aqui dentro, e cada jogo terá o seu trabalho.

Como será feita a transmissão das imagens dos estádios para o Rio de Janeiro? Não há o risco de haver uma queda de sinal e ficarmos com algum jogo “no escuro”?

As imagens vêm por fibra ótica e com dupla abordagem. A CBF está investindo um valor muito alto por essa segurança. Nós já realizamos isso. A CBF foi a primeira confederação do mundo a fazer um jogo com fibra ótica, na final da Supercopa de 2019, e desde lá estamos trabalhando nesse projeto. A final de 2020 também foi assim e é espetacular o resultado. As imagens de Brasília (onde aconteceu a final da Supercopa) para cá chegaram em um segundo, e é até engraçado: você vê as imagens pela cabine e elas chegam até mais rápido do que aquela que está passando na televisão.

E a transmissão do áudio entre o árbitro de campo e o que estiver na cabine?

Ela vem junto por fibra, elas são condensadas. Fora isso, temos um backup, e se tiver alguma emergência vamos utilizar uma comunicação local, por outro linha.

O VAR serve para ver aquilo que o olho humano não viu, mas quem analisa e quem decide é o árbitro. Como o senhor avalia o treinamento do quadro de árbitros do Brasil hoje?

Estamos evoluindo, como todo o processo. O árbitro de vídeo é uma ferramenta muito nova, e na verdade todos nós estamos entendendo a ferramenta – e quando digo todos nós não é só o Brasil, é o mundo do futebol. Recentemente fizemos um workshop com as principais autoridades de arbitragem do mundo: o presidente da comissão de arbitragem internacional, o (Pierluigi) Collina, o diretor do departamento de arbitragem Massimo Bussaca, o Mike Roast, que é o coordenador do projeto VAR no mundo. Os números foram trazidos para nós, as filosofias, e é exatamente isso: nós estamos entendendo o processo do árbitro de vídeo. No Brasil, estamos na terceira temporada. Acredito que estamos mais seguros, um pouco mais experientes. Estávamos acostumados a analisar o jogo que acontecia no campo, hoje em dia as imagens aproximam muito o jogo da TV com o do campo. Ter esse feeling de conseguir entender o que o campo vê e até onde o árbitro de vídeo consegue entrar, é o grande diferencial, o grande desafio. Nós chamamos isso de linha de interferência, até onde o árbitro de vídeo pode avançar dentro do jogo. E esse é um trabalho constante.

Uma reclamação constante, e se viu muito no último Brasileirão, é sobre uma suposta ausência de critério entre os árbitros. Não que um árbitro beneficie clube A ou clube B, mas que tenha um critério para um lance, enquanto outro vê de outra maneira. Existe isso de fato, ou a arbitragem brasileira tem uma visão única?

Em primeiro lugar, é bom deixar bem claro: a regra de futebol é interpretativa. Algumas jogadas você vai ver como amarelo, eu vou ver como vermelho, e ele vai ver sem cartão. Não existe branco e preto, existem jogadas que são cinzas. Hoje em dia a Fifa admite isso. São jogadas que a gente vai ter que respeitar o poder discricionário do árbitro. Nem toda jogada é igual, são pequenas diferenças, sutis diferenças. O jogador jogou a bola ou não? Eu não posso simplesmente parar a imagem de um contato com a sola da chuteira na canela de um jogador e dizer ‘isto é vermelho’. Depende. Qual a intensidade disso? Temos que ver isso em velocidade normal. É nessas sutis diferenças que se constrói a decisão do árbitro. Eu acredito que o árbitro brasileiro tem evoluído muito, principalmente num critério que nós tínhamos grandes problemas, que foi a questão da mão em 2019. Em 2020, quando terminamos o campeonato, o público brasileiro sabia o que era mão e o que não era mão. Gostar do critério, achar que deveria ser diferente, aí não é nosso trabalho.

Outra reclamação parte da comparação de marcações que são feitas aqui no Brasil e na Europa. Existem mesmo esses estilos diferentes de arbitragem?

Você acha o estilo de jogo igual da Europa e daqui? Isso talvez responda à pergunta. Um árbitro de futebol não faz o estilo de jogo, ele se adapta ao jogo que está sendo entregue a ele. Tem jogadas espetaculares que a gente analisa… Por exemplo, a gente coloca uma jogada aqui no Brasil e 100% das pessoas acha que é para cartão amarelo. Você coloca a mesma jogada na Inglaterra, e todo mundo acha que não é para cartão. Você coloca na Argentina, 100% acha que é para vermelho. São jogadas interpretativas, sim. A cultura modifica. Por que no futebol argentino nós temos, em média, 17 faltas por jogo, e aqui nós temos 29? Porque são culturas diferentes, os jogadores jogam de forma diferente. Jogador na Europa recebe um toque, continua jogando e quer fazer o gol. Aqui no Brasil ele é ensinado desde a categoria de base a, se receber um contato, para valorizar o contato e cair. ‘Ah, o árbitro brasileiro marca mais faltas.’ Talvez aqui no Brasil nós tenhamos mais faltas, porque são caracterizadas assim. Eu fui um árbitro que apitou Campeonato Gaúcho, Brasileiro, Libertadores da América, Eliminatórias de Copa do Mundo, e uma coisa impressionante era que os mesmos jogadores que atuavam em competições diferentes, a postura dentro de campo deles modificava. Não aceitar essa diferença de cultura talvez seja não compreender futebol.

Em relação à postura de dirigentes e de treinadores à beira do campo: as reclamações são aceitáveis, são acima do que se espera, ou não se espera que haja nunca?

Nós tivemos um fator diferente (no último Brasileirão): nós tivemos pela primeira vez um campeonato inteiro sem torcida, e o comportamento… O dirigente representa uma entidade. Quando ele está lá com o estádio lotado, com 50 mil pessoas, ele se dá ao direito – e acho isso um barato – de ser torcedor. Ele grita, ele faz, ele torce, ele xinga, ele comemora. Agora, quando nós retiramos 50 mil pessoas de dentro de um estádio, todos esses tipos de reação o árbitro escuta de dentro do campo. O seu adversário ao lado, a comissão técnica ao lado, o dirigente ao lado também escuta. Então, nós vivemos num momento em que a gente precisa exercitar respeito. Nós orientamos nossos árbitros a ter autoridade sem ser autoritário, mas acima de tudo a manter o controle do jogo. Essa mensagem está sendo passada aos clubes. Não vai haver perseguição, mas vai haver aplicação da lei. Creio eu que não seria legal um árbitro reclamando de atitudes técnicas de uma equipe, então acho que deva haver respeito mútuo. Nós vamos manter uma linha, dentro da lei, com controle muito grande das áreas técnicas. E também, é importante deixar claro: o que acontecer nas arquibancadas – o árbitro teoricamente não tem ingerência, exceto se influenciar dentro do campo -, nós vamos analisar. Vamos ter um delegado do departamento de Competições da CBF que vai estar atento e vai relatar ao árbitro de jogo, ao término da partida, acontecimentos fora do comum do lado de fora de campo. Esses acontecimentos vão à súmula, e o tribunal (STJD) já foi avisado de que nós vamos fazer esse tipo de relato, e ele vai tomar as medidas cabíveis para que a gente tenha um futebol mais legal.

Aquelas cenas de dirigentes na arquibancada esperando o árbitro chegar à cabine do VAR para pressionar, então, devem acabar?

A intenção é que se aplique a lei. Não posso afirmar que vai acabar, mas não tenho dúvida de que será citado. E os que estiverem inscritos em súmula, sob autoridade do árbitro dentro de campo, vai sofrer as medidas disciplinares possíveis. A gente cobra muito uma estrutura profissional para a arbitragem, e nós estamos dando isso, a mais profissional possível. Acredito que nossos árbitros nunca tiveram tanto apoio da CBF em toda sua história. O que a gente precisa entender é que nós precisamos de uma postura profissional também dos clubes. O futebol é um produto. O que a gente quer que as pessoas vejam em casa? Brigas ou gols bonitos? Discussões com a arbitragem, ou entre jogadores, ou jogadas bonitas e de efeito? O maior elogio para uma arbitragem de futebol é que, na segunda-feira, não se fale da arbitragem. É só isso que a gente quer.

O quadro feminino de arbitragem no Brasil está crescendo. Vamos ver mais mulheres apitando jogos da Série A este ano?

Tomara, tomara. O que eu digo para elas é o seguinte: elas não são escaladas por serem mulheres, elas são escaladas por sua competência. Esse é o maior respeito que se pode ter por elas. Tem meninas que já vêm apitando Série B do Brasileiro, mas isso tudo é um processo. O caminho é o mesmo (do quadro masculino), tem que galgar os mesmos espaços, os mesmo degraus. Outra coisa, e isso é muito bom: todas as árbitras internacionais tem curso de VAR, e se não tiver não pode apitar Série A. Já tem duas meninas trabalhando dentro do grupo, e se elas continuarem tendo o desempenho que estou vendo, acho que vamos ter estreia de uma árbitra mulher comandando o árbitro de vídeo também. Ainda são poucas no mundo, mas quem sabe a gente não consegue realizar aí uma equipe toda feminina, de campo e de vídeo. O espaço está aberto.