Eu, o rap

Único mediador pop de mundos que não se comunicariam de outra forma, nem pelas TVs nem pelas bolhas de iguais das redes sociais, o termômetro do rap, um instrumento que esteve nas mãos do samba até os anos de 1990, diz muito dos tempos. Sua exuberância na origem da segunda metade dos anos 80 está relacionada com os índices de desenvolvimento social sofríveis na mesma época assim como sua aceitação como música de baile e sua transferência de campo, das franjas periféricas para os bairros mais nobres, nos anos 2000, refletem dias de estabilização e ascensão social da era Lula. Ou seja, o rap, como nenhuma outra expressão, responde de imediato às crises, tornando-se mais duro em solos áridos.

Mas o rap de 2021, ou o que se tem de relevante até o momento produzido por alguns de seus quadros mais criativos e respeitados, pode não atender às expectativas de quem o procura esperando pelo clássico combate da “vítima contra o sistema”, um discurso que ainda perdura, mas de forma diluída. Ao serem lançados praticamente ao mesmo tempo, três grandes álbuns de rappers com linguagens diferentes – o mineiro Djonga, a maior potência do gênero neste início de década; o paulistano Rico Dalasam, o primeiro rapper a assumir sua sexualidade em um meio sem histórico de aberturas à diversidade de gênero; e o fluminense Thiago Elniño, um pensador de discurso sociorracial e de afeto perturbador – mostram que, para além de um reflexo das injustiças que existem do lado de fora, o isolamento social também tem transformado seus discursos.

Djonga, de Belo Horizonte, 26 anos, dispara com a mesma precisão que mostra nos outros quatro discos de sua carreira iniciada em 2017 com o álbum Heresia. Mas seu novo disco, chamado não por acaso Nu, começa com a música Nós apontando para si mesmo. “Outro dia eu me vi perdido / Chorando por algo que outro alguém me causou / Em minha direção, veio um mano e disse / A gente nasce sozinho e morre sozinho / A gente nasce sozinho e morre sozinho / Eu não quis acreditar.” A reflexão atravessa o disco e, depois de muitos versos, Nós termina assim: “Quanto mais sucesso, menos divertido / E eu não era assim, eu sou fruto do meio / Meu coração parece um balde furado / Acho que o vazio me pegou em cheio”.

Nu segue com Ó Quem Chega de forma explosiva, mostrando que o mal de fora segue na mira, mas que os nomes e sobrenomes colocados nos ataques mais nas primeiras fases do rap são substituídos por códigos e frases que dispensam detalhes para revelarem quem é o destinatário. Não precisa, todo mundo sabe: “Peguei um racista no soco / Então pisa devagar no terreiro / Se tá vivo, eu não sei te falar / Mas é como eles dizem: eu não sou coveiro.” Ao Estadão, Djonga fala do que o moveu ao compor as letras de Nu. “Eu estava sentindo a necessidade de falar mais de mim, desse sentimento de achar que poderia ter feito mais. Já havia falado muito de política. Estar em casa (na pandemia) me mostrou que, para todo mundo, eu sou esse cara (o rapper), mas, para os moleques que estão onde vivo, sou só mais um.”

Outra música, Me dá a Mão, mostra Djonga em uma autocrítica mais forte: “Sou falso, sincero, um profeta / Um nada, um alguém, um qualquer / Tremi diante da tempestade / Fui Pedro, homem de pouca fé / Imóveis no meu nome, mano / Achei que tava dominando / E fui dominado pelo efeito dominó / Que derruba peça preta há mais de quinhentos anos.” A palavra seria culpa? Djonga responde: “Culpa é algo cristão, ela o impossibilita de agir. Gosto mais de pensar em responsabilidade, que te coloca no seu lugar. A culpa precisa de um perdão, a responsabilidade não”.

O sistema, então, é trocado pelo eu, e Djonga diz o seguinte quando questionado sobre uma possível mudança de atitude: “Nós precisamos saber o que fizemos ou o que não fizemos para que esses caras (os políticos) chegassem lá. E agora, em vez de irmos pra cima deles, precisamos antes irmos para cima de nós mesmos. Precisamos nos fortalecer para voltarmos a bater de frente. Eles nem ligam para nossos clichês. Tem gente (no rap) mais preocupado com frases de efeito do que em estudar para compor”.

Tudo parece se encontrar com o pensamento de Thiago Elniño. Nascido em Volta Redonda, sul fluminense, mas criado em Ibirité, interior de Minas, até os 11 anos, Elniño cria sobre uma base sonora mais melodiosa e ritmicamente influenciada pelo afrobeat, o samba e os pontos de terreiro. Seu álbum Correnteza fala do afeto e da luta racial, mas, como Djonga, ele traz o olhar para si e chama seus iguais para fazerem o mesmo com uma impetuosidade que já parece marca geracional. Guerra nenhuma será vencida, no pensamento de Elniño, se os discriminados não forem compreensivos e afetuosos entre eles.

O samba rap Dia de Saída traz outra marca forte de sua geração: “Eu vim pra ser bem mais do que você espera / Me diz que imagem você faz de um homem preto / Você me vê distante do reino dos céus / Enquanto eu tô me aproximando do reino de Ketu”. Os novos rappers, com mais informação, sabem de onde vieram e descobrem na ancestralidade as armas mais fortes. “A gente segue falando as mesmas coisas, mas sinto que antes havia pouco acesso a material científico que nos levassem às pautas aprofundadas. A agressividade exagerada não funciona mais.” Elniño compara a primeira geração com a mais recente: “A primeira geração saiu do quilombo para enfrentar o inimigo. Já a nossa volta ao quilombo para repensar as estratégias e não cometer os mesmos equívocos”.

Rico Dalasam teve a primeira matéria de sua vida artística publicada no Estadão, em 2015. Sobre a laje de uma casa em Taboão da Serra, ele contava dos desafios que significava assumir-se gay no meio rap. Seis anos depois, ele tem o álbum Dolores Dala, O Guardião do Alívio como um disco conceitual, com uma bela história a contar, mas sem bandeiras de aceitação de gênero em um primeiro plano. Apenas uma das faixas, Braile, já foi ouvida 2.913.804 vezes no Spotify. Em um texto do álbum, ele diz: “Os enredos e narrativas das canções passam por situações que inevitavelmente são contextos de dor ou de conflito, principalmente na área dos afetos, que acho o lugar que mais me importa discutir neste momento”. O afeto, a compreensão, a autocrítica, a história de seu povo. O rap ensina crescer em pleno combate.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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