Amadrinhada por Laerte, escritora baiana Júlia Grilo estreia com “Cães”

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Disponível agora em e-book, a obra traça uma investigação profunda e filosófica sobre o que é humanidade, e o que aproxima e distancia o homem de outros animais

“‘Cães’ é o tipo de livro que faz o seu cachorro lamentar o dono que tem, você, tão incapaz de perceber todo o caráter e complexidade dele. As personagens — humanas ou não — estão ali tão desnudas, com seus labirintos e debilidades tão aparentes, que você fica constrangido diante delas. Filhote e criança avançam pelos anos num desconcerto doído, e você quer abraçar o seu cachorro, e a mãe da menina que você foi, e a menina que você foi.”

Mariana Carrara, finalista do prêmio Jabuti de 2020  

com o romance “Se deus me chamar não vou”.

“A história de ‘Cães’ é um questionamento sobre a sujeição dos animais, que se converte numa interrogação acerca da degradação humana. É sobre uma cadela, mas não conta a história de um animal de estimação. Compromete-se, em suas entrelinhas, com uma forma de amor pelos animais cuja expressão não se detém em estimá-los, mas ampliar padrões morais aplicados a humanos a eles […].”

Wagner Teles, professor de Filosofia da Universidade 

Estadual de Feira de Santana (UEFS)

O que diferencia o homem dos outros animais? A chegada de um novo cão à casa leva uma menina a questionar se há nos bichos algo além do que o imaginado pelos adultos. Encarando a humanidade como uma ficção, a romancista, ensaísta e cronista baiana Júlia Grilo parte dessa premissa para iniciar uma investigação profunda e filosófica sobre o que é humanidade em “Cães” (Editora Penalux, 2020, 155 pág.), seu romance de estreia. Com orelha escrita pela cartunista Laerte Coutinho e prefácio de Wagner Teles, a edição agora ganha uma versão em e-book, em pré-venda, disponível via Amazon

Em “Cães”, as definições se dão pela diferença: para descobrir o que é humano, a autora busca primeiro pensar naquilo que não é. A escritora baiana define a obra como um romance sobre limiares, sobre o que nos une e o que nos separa, sobre a distância que há entre os homens e os bichos (o homem é ou não é bicho?), e os homens e as mulheres (as mulheres também compõem o que se chama de homem?). 

“É um livro sobre se tornar adulto, sobre os traumas que carregamos e os laços que teimamos em desfazer, para mais tarde voltarmos a eles com cuidado, apertando o nó bem forte. A narrativa é dura, ela expressa a violência pela qual os personagens ali passam, mas também carrega uma espécie de calma melancólica”, define Michelle Henriques, uma das criadoras do movimento Leia Mulheres, que tem como objetivo difundir a escrita de autoria feminina no mercado editorial.

Para Wagner Teles, professor de Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), que assina o prefácio, invenção e realidade andam juntas em “Cães” e “costuram a tentativa de uma cadela tornar-se humana com a elaboração de questões existenciais suscitadas pela exegese autobiográfica da narradora”. “A infância mostra-se próxima da animalidade e a tentativa de tornar-se humana revela-se desesperançada, o que dá lugar a uma filosofia em estado selvagem, apta a tematizar a vida pós-morte, a sujeição das mulheres, luta de classes, o horror da pobreza, o racismo, o caráter temporal do amor eterno, dramas e outras mazelas humanas, suicídio”, escreve.

Em “Cães”, Júlia também entra em territórios da alteridade, questionando a posição da figura feminina — seja uma mulher, seja um cadela — nos meios sociais. A autora evidencia seu gosto por intérpretes da dor feminina. “Dizem que eu pareço Clarice, mas acho que dizem isso menos porque nos parecemos e mais porque escrevemos coisas de mulherzinha. Detesto ser mulher, mas a verdade é que sou mulherzinha pra caramba. Sou uma mulherzinha melancólica óbvia pra caramba. E daí? Elena Ferrante também é, e eu a adoro”, provoca. 

Júlia conta que começou a escrever a obra porque Cafeína, sua cachorra, estava morrendo e ela se sentia culpada por isto. “Ai de mim que ainda sou cristã!”, exclama. “Cafeína meio que começou a apodrecer depois que pariu, e ela pariu porque eu quis, pariu por mim, por minha culpa”, confessa. Com uma linguagem densa e fluida, a narrativa, com tons autobiográficos, apresenta o fio cultural que corre como uma herança repassada de geração a geração. O romance passeia pelos ecos coloniais e destrincha os pilares que nos constituem como povo. É a partir da consonância entre o sertão e o recôncavo baiano que Júlia Grilo encontra os fundamentos de sua literatura: a escritora, de 21 anos, nasceu em Salvador e cresceu em Amélia Rodrigues. Atualmente, vive na capital baiana, onde se gradua em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Uma despedida da adolescência

Enredada na cibercultura, aos 10 anos Júlia Grilo assimilou a linguagem internética e, através da escrita em blogs, esboçou as bases de sua estética, marcada pelo coloquialismo, rapidez e, sobretudo, pela ruptura com a anterioridade. Aos 15, escreveu o seu primeiro livro, um ensaio sobre a escola a partir de sua perspectiva estudantil, fazendo uso de estilística tensa, espirituosa e estridente. Esse texto, nomeado “Perdemos o futuro”, é a gênese essencial de seu projeto literário e configura os pilares de sua escrita. Júlia não se interessa em publicá-lo, no entanto, embora tenha sido convidada para tal. 

Aos 17, finalizou “Deserção”, o seu primeiro romance, cuja publicação também não veio a interessar a autora, que encontra em “Cães”, finalmente, o raiar de sua trajetória no universo da literatura. “O horizonte de Amélia Rodrigues, cidade onde cresci, fazia tudo parecer muito assustador. Em Salvador, porém, eu encontro a efervescência, a urbanidade que se movimenta, a dialética, e a dinâmica da vida artística deixou então de me soar tão intangível: eu via as pessoas produzindo e queria fazer parte da brincadeira também”, explica a autora.

“Cães”, enfim, surge como uma despedida da adolescência. “Minha escrita é desesperada, com meus vestígios de criança; é sóbria, com minha vontade de adulto; e é incivil, porque eu não gosto que me digam o que fazer”, crava, afirmando permear entre o popular e o erudito, no campo das contradições. “É na distância entre a verdade e o desejo que arte e ciência se separam. E me interessam os dois: me interessa o rigor científico e me interessa a irresponsabilidade artística.”

Amadrinhada por Laerte

Júlia se aproximou da cartunista Laerte aos 14 anos. Foi nessa idade que descobriu que um cartunista da Folha de S. Paulo, o João Montanaro, fora contratado justamente aos 14. Trocando mensagens com Montanaro, ele acabou indicando que Júlia escrevesse para Laerte. “Viramos amigas, surpreendentemente amigas, e acho que é com ela que eu compartilho as dimensões mais basilares da minha vida íntima. Como ninguém me dava muita bola no colégio, era Laerte quem lia as coisas que eu escrevia. Ela costuma ser sempre uma das primeiras a ler, até hoje”, revela.

“Eu vi uma escritora surgindo na minha frente, nas mensagens, nos ensaios e nos textos que ia me enviando também. Acho que fui premiada por ter presenciado — mesmo à distância — essa arte se organizando, às vezes em folia, às vezes em sofrimento”, relata Laerte, na orelha do livro.

Principais referências: de ‘Gabo’ à Elena Ferrante

A escritora baiana evidencia as três revoluções “copernicanas” literárias que passou em sua vida até agora: a primeira, ao ler Machado de Assis, com 15 anos, quando se descobriu escritora; a segunda veio com o colombiano Gabriel García Márquez aos 17; e a mais recente, com a autora italiana Elena Ferrante, aos 19. Conceição Evaristo, Ana Paula Maia, Daniel Galera e Victor Heringer estão entre as outras figuras contemporâneas que hoje a influenciam. 

“Gosto das minhas amigas paulistas Mariana Carrara e Maria Eugênia Moreira. Gosto dos meus amigos baianos Hosanna Almeida, Maria Luiza Machado, Kátia Borges e João Victtor Gomes Varjão. Gosto de Tom Zé, sempre ele”, completa. 

Estão em “Cães”, influências diretas de Milton Santos em “A urbanização brasileira”, da tetralogia napolitana de Elena Ferrante, da obra “Saúde Mental, Gênero e Dispositivos” de Valeska Zanello e do livro “As veias abertas da América Latina” de Eduardo Galeano.

Confira um trecho de “Cães”:

“A existência de Cafeína escancarava as minhas limitações e deixava-as mais robustas. Ela era tão diferente de mim — e ainda assim vivia. Ela era tão diferente de mim e acordava todos os dias e todos os dias dormia, não tinha em si nada de excepcional, antes tivesse, isto explicaria nossas distinções. Mas ela era tão comum, e respirava, e comia, e amava, e era tão diferente de mim, como ela poderia ser tão diferente de mim, quando as minhas semelhanças era tudo o que eu sabia? O que eu sabia para além de mim e dos meus? Há alguns dias não havia nada que me contrariasse e agora estava ali, dentro da minha casa, sobre a minha cama, o alarme daquela figura atrapalhando as minhas referências.” 

(pág. 37)

Leia “Cães”

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Da Assessoria