Corrosivo ‘Tigre Branco’ critica castas e é comparado ao coreano ‘Parasita’
Agora, para pasmo de muitos, uma bomba da crítica social, anticapitalista até a medula, feita de sarcasmo e violência, chega à poderosa Netflix. Trata-se do indiano O Tigre Branco, de Ramin Bahrani, que já figura entre os filmes mais vistos da plataforma global de streaming.
O personagem principal, Balram (Adarsh Gourav), conta sua própria história. Ele se diz um homem bem-sucedido, que se fez por si mesmo, self made man da mitologia norte-americana. Balram escreve uma carta ao primeiro-ministro chinês, e, nela, tenta explicar como conseguiu ascender socialmente numa sociedade de castas como a da Índia.
Ele é o “tigre branco” do título. Um animal tão raro que existe apenas um exemplar a cada geração. Tão excepcional como um pobre nascido nos cafundós do país e de casta baixa chegar a ficar rico, como aconteceu com Balram. Portanto, a história será a de como ele chegou lá. Em sua explicação do sistema de castas, faz uma simplificação. Na verdade, só existiriam duas castas para valer: a dos ricos e a dos pobres. Passar da inferior para a superior é quase uma impossibilidade lógica. A não ser com o uso de certos expedientes.
Para chegar-se aos ricos é preciso primeiro aproximar-se deles na única condição possível, a de empregado. Esperto, Balram consegue se tornar motorista particular do mais jovem membro de um clã milionário, Ashok (Rajkumar Rao). Ele se torna o empregado-modelo, não se queixa dos horários abusivos a que é submetido, mora numa pocilga no porão e tolera todos os insultos da família. Será o preço para ganhar a confiança de todos. E sobretudo do jovem casal, Ashok e Pinky (Priyanka Chopra, ex-Miss Índia) que tem também lá seus problemas. Eles vivem em Nova Délhi, mas têm a cabeça em Nova York, onde moraram e estudaram. São exemplares típicos das elites de países pobres hoje pudicamente chamados de “em desenvolvimento”. Não se reconhecem como indianos. Sob a aparente amizade com os empregados, escondem o desprezo pelos “inferiores”. Têm vergonha do país, mas não percebem que contribuem para seu atraso.
Pela trajetória de Balram rumo ao sucesso, evidencia-se a distopia da sociedade indiana, com os ricos ostentando loucamente seus bens de luxo enquanto miseráveis se espalham pelas ruas de Nova Délhi e do interior.
Fica também exposto o grosseiro materialismo dessa “elite”, cuja régua mede tudo pelo dinheiro e pelo sucesso. Como dentro dessa lógica os pobres não valem nada, dão-se ao luxo de tratá-los como objetos descartáveis. Quando não têm mais serventia, são abandonados à própria sorte.
Há um ponto nevrálgico na história quando a dondoca Pinky dirige seu carro bêbada e atropela uma pessoa. Será preciso encontrar um bode expiatório para assumir a culpa e evitar o escândalo. Por um bom punhado de rupias, é claro. Afinal, dinheiro há de sobra e os pobres estão aí para isso mesmo.
Esse drama social se desenvolve em boa parte sob o signo do humor. Não um humor leve e sim o que busca no grotesco das situações algum motivo para o riso. Desta forma, não será um riso descompromissado, mas expressão de reconhecimento de uma situação absurda. Esse humor é cortado pela intrusão do real, sob formas às vezes bastante cruéis. São como tratamentos de choque, a chamar a atenção do espectador para o que está em jogo de verdade nessa história toda.
O próprio narrador não nos deixa esquecer do que está em pauta, por isso o filme se torna às vezes didático e reiterativo. Está em mira nem tanto o egoísmo ou a maldade dos indivíduos em si, mas a estrutura econômica determinante que tudo seja desse jeito e não de outro.
A narração é feita por aquele que se deu bem, e esse ponto de vista faz toda a diferença para a eficácia da obra. Balram desvenda o mecanismo de funcionamento de uma sociedade e usa esse conhecimento para jogar o jogo segundo suas regras. O filme é corrosivo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.