Peça ‘Sede’, de Eugene O’Neill, ganha versão filmada da Cia Triptal

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O naufrágio do navio de passageiros britânico Titanic, em abril de 1912, comoveu o mundo – a morte de mais de 1.500 pessoas chocou pessoas de todos os países, notadamente o dramaturgo americano Eugene O’Neill (1888-1953) que, inspirado pela tragédia, escreveu uma série de peças. Entre elas, Sede, de 1914 e que a Cia Triptal, sob a direção de André Garolli, gravou a partir de uma encenação especialmente realizada no Teatro Gamaro. A filmagem será exibida gratuitamente no canal YouTube do Centro Cultural São Paulo, a partir desta sexta, 23, às 21h30.

Em cena, apenas três personagens reunidos em um bote salva-vidas: um homem branco vestido em traje de gala (Fabrício Prieto), uma mulher branca vestida em traje elegante de uma dançarina (Camila dos Anjos) e um homem negro vestido em seu uniforme de marinheiro (Diego Garcias). Não há perspectiva de salvamento e, para agravar a situação, o barco está cercado de tubarões. Na pressa para deixar o navio que naufragava, cada um conseguiu trazer apenas um único objeto, aquele que mais lhe representa em vida – uma atitude perigosa, pois não trouxeram elementos de primeira necessidade, como comida e água. Só lhes resta esperar, questionar ou desesperar.

Sede figura no lote dos primeiros textos teatrais escritos por O’Neill, que deixou um total de 49 peças que foram essenciais para estabelecer a base para o teatro adulto dos Estados Unidos – e basta apenas um título, Longa Jornada de um Dia Noite Adentro, de 1941, para classificá-lo como um autor clássico.

“Poucos se empenharam tanto com as camadas inferiores da vida americana e O’Neill tentou, quase desde o início da carreira, ultrapassar a empatia, a compaixão e a humilhação, rumo a algo mais, em busca de um sentido extraordinário que – ele discernia – acenava de maneira vaga para além da emoção e do intelecto”, escreveu, em 2004, o também dramaturgo Tony Kushner. E isso se torna evidente em Sede, especialmente quando se estabelece a questão racial quando se torna evidente a divisão entre o par de brancos e o marinheiro negro.

A pesquisadora Maria Aparecida Bento, em sua tese de doutorado defendida na USP, cunhou a expressão “pacto narcísico de branquitude”, um acordo silencioso entre pessoas brancas que se contratam, se premiam, se protegem. É o que se observa em cena: diante de um marinheiro que se mantém em silêncio a maior parte do tempo, o homem e a mulher trocam diálogos conspiratórios, culpando o rapaz pela situação de penúria vivida por todos naquele momento – inclusive de que estaria escondendo água potável, o que ele nega.

À medida que a situação se torna mais desesperadora, os personagens brancos tomam medidas desmedidas, como quando a dançarina primeiro oferece um colar de diamantes (o objeto que trouxe) e depois o próprio corpo ao marinheiro. O grau de insanidade aumenta até terminar de forma trágica.

Apesar de ter mais de cem anos, o texto de O’Neill mantém surpreendentes aspectos que ainda são atuais. Basta pinçar algumas frases, como “Deve ser horrível ouvir os gritos dos que estão morrendo” ou “É como se uma desgraça após a outra acontecesse para tornar nossa agonia mais terrível”. Segundo a Cia Triptal, elas “poderiam ser ditas neste episódio recente dos nossos tempos, o surto coletivo, pandêmico, enquanto buscamos no isolamento e no distanciamento chances de sobrevivência. As certezas que sempre asseguraram nossos planos e ambições colapsaram, mas as barreiras que delimitam os territórios sociais seguem inabaláveis, definindo quem entre quem será sacrificado primeiro”.

Ator do renomado grupo Tapa, um dos mais importantes da cena brasileira, André Garolli vem realizando, desde 2006, uma investigação profunda sobre a obra de Eugene O’Neill, especialmente as peças que trazem o mar com importante função cênica: Luar Sobre o Caribe, Longa Viagem de Volta para Casa, Macaco Peludo, Rumo a Cardiff e Zona de Guerra. Em todas, o público passava por uma experiência sensorial ao se posicionar próximo dos atores.

Com a impossibilidade de se apresentar Sede presencialmente, a versão filmada buscou outras alternativas para conquistar a cumplicidade do público. Assim, a maquiagem criada por Beto França aposta em efeitos especiais para desgastar o aspecto dos personagens, enquanto os figurinos elaborados por Telumi Hellen propõem em sua criação a desconstrução das castas que cada personagem simboliza. Já o cenário de Júlio Dojcsar acentua o isolamento e a dificuldade entre os náufragos e, finalmente, a iluminação (assinada por Sendi Moraes e Garolli) reforça o contraponto entre realidade e ilusão.