Tom Zé cria canções para peça, que compõem seu novo disco

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Era início de 2020 e Tom Zé havia criado uma canção especialmente para o novo espetáculo do diretor Felipe Hirsch, Língua Brasileira, que estrearia em março daquele ano. Veio a pandemia, porém, e os planos foram adiados. Mesmo isolados, Tom Zé e Hirsch cultivaram uma frenética troca de mensagens, que resultou em outras nove canções inéditas e um novo rumo para o espetáculo, que finalmente estreia nesta quinta, 6, no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação.

“Agora temos uma peça muito diferente daquela que estrearia em 2020”, conta Hirsch que, à frente do coletivo Ultralíricos, decidiu enfrentar um desafio: desbravar a epopeia dos povos que formaram a língua falada no Brasil, com seus mitos e cosmogonias, desde as remotas origens ibéricas, passando por celtas, romanos, bárbaros e árabes, pela África e América Nativa até chegar aos dias de hoje. Para isso, o ponto de partida foi a canção Língua Brasileira, do álbum Imprensa Cantada (2003), de Tom Zé, que traz belos versos como “Quando me sorris / Visigoda e celta / Dama culta e bela / Língua de Aviz”.

Foi uma viagem linguística, que teve a música de Tom Zé como timoneira e uma ampla pesquisa como embasamento. “Construímos uma sólida dramaturgia e, em relação ao que era em 2020, o espetáculo hoje é mais concentrado”, observa Hirsch, que aponta esta como a peça mais desafiadora de sua vasta carreira, iniciada em 1993. “Usamos o tempo de isolamento para amadurecer o projeto.”

Ideias

Em cena, os atores Amanda Lyra, Danilo Grangheia, Georgette Fadel, Laís Lacôrte, Pascoal da Conceição e Rodrigo Bolzan cantam e declamam os versos criados por Tom Zé, cuja criatividade oferece belas expressões como “cavalgo nas palavras” ou “uma ilha sem fuzil / sem ba ba ba bala civil”, presente em Hy Brazil. “Foi um período tão efervescente de ideias que confesso ter pouco notado a presença da pandemia na minha rotina”, comenta ele, aos 85 anos.

Seu processo criativo, de fato, não é limitado por barreiras. Uma das canções mais instigantes, Língua Prova Que, é definida por Hirsch como uma espécie de opereta pois, em seus dez minutos, traz versos elaborados com cuidado formal, mas embalados por ritmos diversos, cujas mudanças são repentinas. “É um dos momentos mais exigentes para o elenco”, diz o diretor.

Ao Estadão, Tom Zé conta que ali tornou a investir em uma narrativa. “Foram dez canções de um minuto cada que se montavam na minha cabeça”, explica. “E, à medida em que ia fazendo, mostrava para o Felipe, que respondia com caminhos certeiros. Foi ele quem me ajudou a ter coragem e força para perseguir essas músicas.”

Tão logo criava uma nova canção, Tom Zé enviava um demo ao encenador, que compartilhava com Maria Beraldo, diretora musical responsável pela adequação ao espetáculo. Não foi uma tarefa fácil – “A música de Tom Zé é muito viva, formada por um material muito rico”, conta ela. “Ele é fiel à antropofagia artística, ou seja, utiliza material que o inspira e transforma em algo novo. Assim, meu processo sempre foi o de tentar entender como funciona seu raciocínio musical.”

Disco

Com as dez novas canções, Tom Zé construiu um novo disco, que será lançado em duas semanas pelo Selo Sesc. Será a forma ideal para entender a organicidade do trabalho do compositor, tão importante no processo criativo de Hirsch. Como em Hy Brazil, a primeira a ser criada – em seu característico estilo experimental, Tom Zé partiu do mito irlandês sobre uma misteriosa ilha chamada Hy Brazil para criar uma canção que se quebra em diversos ritmos.

“O espetáculo pretende mostrar tanto a exuberância da origem da língua portuguesa como sua ação nociva, de contribuir para a extinção de outras – atualmente, no Brasil, cerca de 190 idiomas (a maioria indígenas) estão em vias de acabar. Algumas sobrevivem graças à existência de apenas uma pessoa que a domina. É o encontro do esplendor com a sepultura”, observa Hirsch, inspirando-se em um verso de Olavo Bilac que aponta o paradoxo do nosso idioma: “És, a um tempo, esplendor e sepultura”.

O espetáculo se distribui em cinco atos, além de um prólogo e um epílogo, viagem linguística que contou com a colaboração de diversos pesquisadores especializados no estudo do português falado no Brasil.

“O que interessava era mergulhar na cultura, na mítica, na mística, nas narrativas, no folclore e no ambiente das diversas culturas que puderam de alguma maneira participar da construção do idioma”, atesta Caetano Galindo, consultor assim como Yeda Pessoa de Castro e Eduardo de Almeida Navarro, entre outros. “Há centenas de línguas em uso no nosso país: as indígenas que resistiram, as africanas, europeias e asiáticas. Há ainda crioulos ou anticrioulos (línguas surgidas no local onde são faladas) derivados de comunidades quilombolas, por exemplo.”

Fatos reais também se impuseram na criação, como a ação do grafiteiro Kadu Ori que, em 2016, pichou um dos símbolos do Rio de Janeiro: o relógio da Central do Brasil. “Sem entrar na questão do crime, a frase que ele pichou, ‘Nossa pátria está onde somos amados’, se conecta com o pensamento do espetáculo”, diz Hirsch, que também trouxe a história da ocupação que índios guaranis fizeram no Pico do Jaraguá, em 2017, em protesto pela revogação de uma portaria que dava a eles a posse de uma porção de terra. “Novamente, uma ação de urgência para que os índios pudessem sobreviver independente do que acontece no momento atual.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.