Do trabalho doméstico não remunerado ao estupro

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Por Kauana Vieira da Rosa Kalache

Recentemente, dois casos de violência vieram à tona para, mais uma vez, nos fazerem estalar os olhos com amargor aos abusos sofridos cotidianamente pelas mulheres e meninas em nossa sociedade. Uma moça sofre tentativa de estupro ao ser abordada por desconhecido na rua a caminho do trabalho e é socorrida por motorista e passageiros de um ônibus. Em circunstância diversa, a apresentadora Ana Hickmann denuncia o esposo e pai de seu filho por agressão.

Tema da última redação do Enem, a mulher do lar tem frequentemente seus direitos e dignidade violados, mas a agressão continua também sendo praticada física e sexualmente contra esta parcela vulnerável da população, independentemente da classe social, idade ou profissão exercida. Isso diz muito sobre como ainda somos percebidas pela sociedade. E a violência começa precocemente.

Assim como quando falamos do trabalho doméstico e familiar não remunerado, a violência sexual também tem entre suas vítimas adolescentes e crianças. Cabe ressaltar que a espécie de trabalho infantil mais comumente explorada é a doméstica, sendo esta realizada na sua maioria por meninas, de acordo com a OIT – Organização Internacional do Trabalho.

No que se refere aos casos de violência sexual, meninas até treze anos são as mais vulneráveis ao crime, figurando como 88,2% das vítimas de estupro de vulneráveis de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022) – sendo as meninas negras mais propensas a sofrerem a violência.

O estupro é crime mundialmente praticado, com grande incidência. Nos Estados Unidos, por exemplo, 1 em cada 6 mulheres foi vítima de estupro na forma tentada ou consumada ao longo da vida. Entre 2009 e 2013, o conselho tutelar norte-americano, o Child Protective Services, indicou que 63 mil crianças foram vítimas de abuso sexual no país. A maioria das vítimas tinha entre 12 e 17 anos. Ressalta-se que dentre as vítimas, 48% estavam no ambiente doméstico, dormindo ou realizando alguma atividade em casa.

As consequências para os crimes sexuais praticados nos Estados Unidos são um pouco diversas das existentes no Brasil. Além da pena de prisão, há ainda a previsão de penalidade relativa à tratamento compulsório do ofensor sexual, bem como o programa de registro e notificação de ofensores sexuais – o que se denomina de consequências colaterais da condenação.

Uma vez condenado por crimes dessa natureza, há a inserção do sujeito em um registro nacional de ofensores sexuais (sex offender registry) disponibilizado para a comunidade em geral, através de websites, sob o argumento de proteção daqueles que integram a sociedade.

O registro prevê ainda a restrição de locais de moradia e trabalho, proibição de frequentar determinados locais e, em caso de crime contra menores, impossibilidade de morar ou trabalhar próximo a escolas, por exemplo.

Críticos ao sistema contestam a prática, sob o argumento de que a punição administrativa e social pelo crime cometido, após cumprimento da pena, é muito maior que a sanção penal recebida. Não adentrando nesta questão, fato é que, por mais severas que sejam as medidas aplicadas aos ofensores sexuais, os Estados Unidos enfrentam, assim com o Brasil, dificuldade em prevenir a ocorrência do crime, apontando-se para a ineficácia das medidas adotadas.

Isso porque, em sua esmagadora maioria, os crimes sexuais são cometidos por familiares e amigos ou pessoas do círculo de confiança da vítima – assim como a violência pautada em gênero de maneira geral, o que faz com que não ocorra a denúncia do crime, com o julgamento e condenação do abusador, e o consequente registro. A realidade brasileira não é diferente, o estupro aqui também e subnotificado e dos casos registrados de estupro de vulnerável, em quase 80% deles o estuprador era conhecido da vítima.

Que a coragem das mulheres que tiveram suas dores expostas recentemente contribua para a mudança que tanto desejamos, tanto no contexto de oportunizar o desenvolvimento profissional e acadêmico de meninas e mulheres, como no de erradicar a violência em todas as suas formas.

Kauana Vieira da Rosa Kalache é advogada, mestre em Direito Penal e professora da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

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