O sonho que pode virar pesadelo

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Matheus Henrique de Freitas Urgniani, Procurador Jurídico Câmara de Xambrê-Pr, Mestrando em Processo e Cidadania – Unipar e Pós-Graduado em Perícia Criminal e Judicial – Gran Faculdade.

O título sugerido inicialmente pode causar a impressão de não estar diretamente relacionado à área jurídica, como se tratasse de um tema desprovido de relevância para o universo do direito. Entretanto, essa aparente desconexão é, na verdade, uma forma sutil de abordar uma situação fática que tem ganhado destaque em diversas regiões do Brasil e que está sob a tutela do direito.

Um exemplo emblemático dessa realidade é observado em casais que recém-adquiriram uma casa na planta, ansiosos por realizar o sonho da casa própria. Contudo, ao finalmente adentrarem o imóvel, deparam-se com problemas como infiltrações, piso inadequado e a não utilização do cimento adquirido. Diante desse cenário, a reação comum é recorrer ao Poder Judiciário, buscando compulsoriamente a realização do tão sonhado lar através da intervenção do Estado.

Essa abordagem destaca a temática dos imóveis adquiridos, que inicialmente representam a concretização de um sonho, mas que posteriormente se transformam em verdadeiros “pesadelos”. Contudo, o enfoque aqui não é em residências, mas a propriedades rurais, como é o caso de “chácaras”.

A relevância dessa abordagem transcende a perspectiva de ser o autor de uma petição civil em busca de reparação de danos pelo Estado-Juiz; trata-se, na verdade, da posição do comprador ser réu em uma ação penal, cuja condenação por crime é requerida pelo Ministério Público.

Para ilustrar, imagine o leitor residindo em São João do São Matheus, no fictício estado do nunca, no Brasil. Um senhor de 72 anos oferece uma chacrinha de 1.000 m², aparentemente ideal para passar fins de semana em família e cultivar produtos agrícolas.

O único inconveniente é a ausência de documentação, embora haja fornecimento de água e o nome do comprador conste na matrícula, juntamente com outros 18 adquirentes. A realização do sonho, nesse contexto, pode se tornar um dilema quando o Ministério Público busca a condenação do comprador em um processo criminal.           

Uma indagação que poderia surgir na mente do estimado leitor é: “Mas, qual é o crime nisso?”

Vamos analisar. De acordo com o art. 50, I, da Lei nº 6.766 de 1979, que versa sobre o Parcelamento do Solo Urbano e estabelece Outras Providências, o fracionamento irregular de terrenos rurais é proibido, sujeitando o infrator a uma pena de reclusão de 1 a 4 anos, além de uma multa que varia de 5 a 50 vezes o maior salário mínimo vigente no país. Quando o parcelamento é realizado por meio de venda, promessa de venda ou de outra forma com a intenção de comercialização, a infração é qualificada, elevando a pena para 1 a 5 anos de reclusão, com a dobra da multa mencionada acima.

Essa norma é considerada uma norma penal em branco, requerendo a complementação de outra norma para sua compreensão. Que seria a combinação dos artigos 65 da Lei nº 4.504/64 e 8 da Lei 5.868/72, os quais explicitam a proibição da transmissão de áreas rurais com dimensões inferiores a 20.000 m².

Portanto, caso o leitor opte por adquirir uma área de 1.000 m² situada na zona rural, sem expansão de loteamento, estará incorrendo no crime previsto no art. 50 da Lei nº 6.766/79. Diante disso, é recomendável evitar a compra de terrenos rurais com metragem inferior a 20.000 m², pois o “sonho pode virar pesadelo”. Se já efetuou a compra e recebeu uma notificação do Ministério Público para prestar esclarecimentos sobre o referido crime, é crucial procurar um advogado criminalista especializado no assunto.              

Embora a percepção comum seja de que quem parcela deve ser condenado, existem teses defensivas a serem apresentadas e ponderadas, como a prescrição, a insignificância (ampliação do entendimento firmado no RHC 58247 / RR), e a falta de tipicidade por ausência de dolo.

Portanto, ao receber propostas de “chacrinhas”, mesmo que tentadoras, é essencial certificar-se da regularidade, a fim de evitar complicações futuras, buscando sempre profissionais capacitados e as autoridades públicas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei no 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6766.htm. Acesso em: 23 de Jan. 2023.

BRASIL. Lei no 5.868, de 12 de dezembro de 1972. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5868.htm. Acesso em: 23 de Jan. 2023.

BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4504.htm#art65. Acesso em: 23 de Jan. 2023.

BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso ordinario em habeas corpus 2015/0078375-6. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp. Acesso em: 23 de Jan. 2023.

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