Mães atípicas enfrentam desafios entre diagnósticos e rotinas

Estimated reading time: 12 minutos

No Dia das Mães, celebra-se todo tipo de maternidade e de amor que ultrapassa os limites da rotina. Para mães atípicas, essa celebração carrega também histórias de luta, renúncia e redescoberta. Não existem palavras suficientes para descrever a importância de uma mãe na vida de seus filhos. Oferecer amor e cuidado exige uma entrega única, que somente as mães são capazes de compreender em sua totalidade. No entanto, essa entrega se torna ainda mais intensa quando o filho possui algum tipo de neurodivergência.

Transtornos como o espectro autista (TEA), o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtornos específicos de aprendizagem (como a dislexia), transtornos de comunicação, deficiência intelectual, síndrome de down, transtornos do desenvolvimento, entre outros, fazem parte das possíveis neurodivergências. “Esses quadros exigem intervenções contínuas, acompanhamento multidisciplinar e adaptações constantes na rotina de responsabilidades que, majoritariamente, recaem sobre as mães”, esclarece a psicóloga Jaqueline Moretto.

Kelly, Eliana e Cris Louise são mães atípicas, como é denominado o termo para quem possui filhos neurodivergentes. Elas precisaram adaptar suas rotinas e até mesmo recalcular a rota de suas profissões para atender às necessidades específicas dos seus filhos, em meio as responsabilidades, ao cansaço e a esperança.

Eliana Caznók Sumi vive essa realidade com Laís, de 36 anos. A filha possui trissomia 21 (T21), também conhecida como síndrome de down. Por mais de 40 anos, ela foi professora na educação especial, com significativas especializações na área. Mas foi na maternidade que seu conhecimento se intensificou. “Nosso vínculo afetivo é algo imensurável, concreto, palpável, construído e renovando a cada instante. A Laís me ensinou e continua me ensinando coisas que só ela poderia me ensinar e vice-versa”, menciona Eliana.

O filho de Kelly Kristina de Oliveira Machado é Murilo, de 11 anos. Seus diagnósticos envolvem o TEA de grau 1 (grau de maior autonomia), TDAH, transtorno opositor desafiador (TOD) e transtorno de ansiedade generalizada (TAG). Estar sempre alerta é um fator diário para identificar gatilhos capazes de gerar crises. Servidora pública e mãe solo, ela conquistou o direito de trabalhar meio período para dedicar-se ao Murilo em tempo integral. “Digo pra ele, não sou perfeita, estou longe de ser. Mas estou fazendo o meu melhor. Faria tudo de novo, quantas vezes fossem necessárias”, compartilha Kelly.

Quem também precisou adaptar sua carreira e rotina foi a empresária Cris Louise. Seu filho Raul possui TEA grau 1 e, com ele, aprende diariamente o que é amor incondicional, entre os gestos carinhosos, amáveis e sensíveis do pequeno. “Passamos muito tempo juntos, nossa sintonia é surreal. Tem dias que sou terapeuta, motorista, amenizadora de conflitos, guerreira, mas também tem dias que só quero agir como uma mãe ‘comum’, que mima o filho deixando comer doce, ver telas, sem terapias, sem correria, pois preciso aliviar toda a tensão da rotina pesada que vivemos.”

Ser mãe já é, por si só, uma das tarefas mais desafiadoras da vida. Ser mãe atípica é caminhar todos os dias por trilhas não previstas, reinventar o tempo, abrir mão de planos para criar novos significados, tudo isso com o coração em estado permanente de presença e cuidado. A história de Eliana, Kelly e Cris refletem empatia e apoio às tantas outras mulheres que vivem a maternidade com coragem dobrada e amor multiplicado.

A falta da rede de apoio enfrentada pelas mães atípicas

Na jornada da maternidade, ter com quem contar é como respirar fundo em meio à tempestade. É saber que, mesmo nos dias difíceis, existe um colo, uma escuta, uma mão estendida. Mas, para muitas mães atípicas, esse porto seguro é uma ausência sentida todos os dias. Entre consultas, terapias, crises inesperadas e o desejo constante de acertar, muitas seguem em silêncio, acumulando funções e emoções. A solidão, nessas horas, deixa de ser apenas a ausência de companhia: torna-se ausência de cuidado, de escuta e de acolhimento para com elas.

A psicóloga Jaqueline Moretto observa com sensibilidade que “a sobrecarga mental materna é um fenômeno amplamente reconhecido, mas assume características ainda mais complexas no caso de mães atípicas. Essas mulheres enfrentam uma sobreposição constante de demandas emocionais, cognitivas e práticas, muitas vezes sem a rede de apoio adequada por parte do Estado, da sociedade e, em muitos casos, do próprio ambiente familiar. Esse cenário gera um impacto significativo e cumulativo sobre a saúde mental, que tende a se intensificar ao longo do tempo e, frequentemente, permanece negligenciado ou invisível”.

As consequências da ausência de uma rede de apoio podem afetar profundamente a saúde mental da mãe, a ponto de comprometer sua qualidade de vida. “O burnout parental é um estado de exaustão emocional intensa em que os recursos físicos e emocionais de uma mãe são completamente consumidos. A fadiga extrema, a irritabilidade constante e a sensação de ineficácia tornam-se predominantes, levando à exaustão emocional e dificultando a continuidade do cuidado. Essa sobrecarga também pode gerar sentimentos de solidão, pois a falta de apoio cria isolamento social em que a mulher se sente sozinha no processo de maternidade, sem ninguém com quem compartilhar as dificuldades ou alegrias do dia a dia”, sinaliza Jaqueline.

Kelly Kristina, mãe do Murilo, de 11 anos, conhece bem esse peso. Ela desabafa que “é cansativo e exaustivo. Ser mãe solo e fazer tudo sozinha é o que mais cansa. Às vezes eu precisaria de um descanso, de um momento só pra mim, pra me cuidar, fazer algo por mim ou simplesmente não fazer nada. Mas por enquanto isso não é possível. Mas eu tenho fé que tudo isso vai valer a pena no final”.

Foi buscando amparo e compreensão que a empreendedora Cris Louise, mãe de Raul, encontrou acolhimento na Associação de Familiares e Amigos dos Autistas de Toledo – VIDA. “Lá, é possível dividir experiências e apoio. Me sinto acolhida pelas outras famílias e fico admirada com algumas mães que estão à frente dessas associações. Percebo a força delas em ajudar e acolher, mesmo com a rotina tão intensa que levam com seus filhos”, reconhece.

O apoio oferecido pelo VIDA tem sido um farol para mães que buscam orientação e pertencimento. A presidente da associação, Roseli de Lima Oliveira, esclarece que “algumas mães nos procuram e aí passamos os cuidados e como é o processo de aceitação de ter um filho autista, porque para muitos pais isso se torna um luto até eles conseguirem entender como agir e aceitar que seu filho tem que ter um cuidado especial”.

Numa sociedade que precisa aprender a cuidar de quem cuida, mães atípicas seguem sendo farol. Precisam, mais do que qualquer coisa, ser vistas. Não apenas por aquilo que fazem, mas por tudo o que sentem. Sua luta merece ser compartilhada e sua história, respeitada. Afinal, acolher uma mãe é, também, acolher a infância, a neurodivergência e a vida em sua forma mais genuína de amor.

Mãe muda de carreira para acompanhar o filho autista

Após dedicar 21 anos à sala de aula, a professora Maria Aparecida Denardi recalculou sua trajetória profissional. Seu filho, Luiz Felipe, hoje com 30 anos, foi diagnosticado desde a infância com autismo nível três, o que exige cuidados constantes e presença contínua. As tarefas mais simples do cotidiano, como tomar banho ou alimentar-se, são situações que pedem acompanhamento constante. Para estar ao lado dele em tempo integral e garantir uma rotina segura, encontrou uma nova forma de trabalhar. Criou sua própria empresa de logística.

Para ela, trabalhar fora e contratar um cuidador não é uma opção viável financeiramente. “O valor que eu ganharia trabalhando fora não cobriria nem o custo de um cuidador por oito horas diárias. Simplesmente não valeria a pena.”

“Foi aí que surgiu a ideia de montar uma empresa de transporte. Assim, eu e ele passamos a fazer entregas juntos. Ele está sempre ao meu lado”. A decisão veio após a perda do emprego em 2019 e o isolamento da pandemia no ano seguinte. Junto do desafio, veio também uma descoberta de que a vida na estrada oferece não apenas liberdade, mas conexão.

Durante as viagens por cidades vizinhas a Toledo, o menino que antes se isolava começou a interagir mais com o mundo ao redor. “Quando não está agitado, presta atenção na estrada, observa as nuvens, olha as árvores e está conversando mais também.” Luiz Felipe se comunica de forma limitada, mas sua mãe percebe uma evolução clara na ‘expressão do olhar e da presença’. “Ele olha e diz: ‘olha a árvore’, ou então vê uma nuvem e comenta”.

Maria é, portanto, um porto seguro para Luiz. “Se eu estou dirigindo e ele começa a ficar bravo, a gritar, estou ali com ele no carro. Se chego num cliente, ele ainda está agitado, dá tempo de dar a medicação e de dar uma volta para acalmá-lo”.

Essa vivência também despertou empatia e sensibilidade na comunidade. “Teve um dia, por exemplo, que eu esqueci de levar a bolachinha dele. Ele ficou bravo, entrou alterado comigo no mercado. Quando fui passar no caixa, pedi desculpas. A moça respondeu com calma: ‘não tem problema, a gente entende’. Aquilo me tocou.”

O que era para ser uma alternativa virou um propósito. “Se eu tivesse que escolher entre estar na estrada ou estar exclusivamente em sala de aula, hoje eu escolheria a estrada. Porque acho que aquela sensação de liberdade que eu sinto ao olhar a natureza, ele também sente.”

Adaptar sua profissão para poder cuidar do filho não foi apenas uma mudança de carreira, mas uma transformação profunda. Ao escolher estar ao lado de Luiz Felipe na estrada, Maria não apenas ajustou seu trabalho, mas também possibilitou uma convivência mais rica e cheia de significado. Essa adaptação representou a busca por um equilíbrio entre o cuidado diário e a liberdade, mostrando que, muitas vezes, a verdadeira vocação é aquela que surge do coração e da necessidade de estar presente para quem mais precisa.

Mãe da mãe: quando a filha assume o papel de cuidadora da mãe

Com o tempo, os papéis entre pais e filhos pode inverter. Quem um dia cuidou, passa a ser cuidado. No caso de famílias afetadas pelo Alzheimer, essa mudança costuma ser mais intensa e precoce. Foi o que aconteceu com Ângela Alessandra de Oliveira Mores Rodrigues, filha mais velha de quatro irmãos. Quando sua mãe, Iracema, começou a apresentar os primeiros sinais da doença, a rotina de todos foi transformada. Aos poucos, Ângela assumiu o papel de ‘mãe da mãe’, oferecendo amparo a quem sempre esteve no lugar de prover os cuidados.

A inversão dos papéis foi gradual. O início se deu com a busca por um neurologista e a realização de testes cognitivos. “A mudança de papéis é algo que aconteceu aos poucos. A primeira grande mudança foi ela parar de dirigir”, conta. As pequenas adaptações diárias, como desligar o gás todas as noites para evitar esquecimentos, ilustram o cuidado constante.

O aspecto emocional exigiu ainda mais atenção. “Cuidador precisa de cuidado”, resume. Terapia, fé e o apoio familiar foram fundamentais para manter o equilíbrio. “Sou uma pessoa reativa”, confessa. Mas o aprendizado da convivência com a mãe e o exercício diário da paciência moldaram novas formas de lidar com a realidade.

Cuidar de Iracema tornou-se, para Ângela, uma maneira de retribuir o amor recebido. A inversão de papéis, embora desafiadora, revela uma das expressões mais profundas de afeto: estar presente quando quem cuidou já não consegue mais fazê-lo. A velhice traz, por vezes, essa virada silenciosa e é nesse novo papel que o amor pode florescer com ainda mais força.

Da Redação

TOLEDO

...
Você pode gostar também
Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado.