O impacto da pandemia na transição para energias renováveis na América do Sul

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As emissões de poluentes de dióxido de carbono foram reduzidas substancialmente em todo o mundo durante a primeira fase da crise. Embora essas emissões tenham retornado recentemente aos níveis habituais, acompanhando a retomada nos países de alta renda, o contexto pós-pandemia oferece uma oportunidade incomparável de promover a transição para as energias renováveis.

Esse processo acaba sendo acelerando conforme os países também incorporam as energias renováveis ao seu mix de geração de energia. Nesse sentido, embora até o início deste ano, o investimento nessas fontes tenha sido impulsionado pelo aumento constante da capacidade instalada, por novos projetos em andamento e pelo acesso preferencial que elas têm na maioria dos sistemas de energia, a tendência de queda dos preços e da lucratividade das fontes tradicionais e a redução dos custos de geração de eletricidade com fontes renováveis estão abrindo espaço para um cenário que poderia favorecer e promover o investimento em fontes de energia limpa, tanto global quanto regionalmente.

O desenvolvimento do setor de energias renováveis na região busca substituir gradativamente a contribuição das fontes tradicionais na matriz energética por fontes alternativas mais limpas, favorecendo a descarbonização das economias em um cenário no qual a demanda de energia deverá recuperar parte da trajetória de crescimento pré-pandemia.

De acordo com dados divulgados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a América Latina é uma das regiões mais verdes do mundo em termos de geração de energia, já que cerca de 60% do consumo energético dessa localidade são provenientes de fontes de origem renovável enquanto a média global não ultrapassa 25%. Dessa forma, vários países da região sul-americana aumentaram a contribuição das energias renováveis para a capacidade de geração, reduzindo a dependência de fontes mais tradicionais, especialmente os combustíveis fósseis. E isso foi possível em um bloco econômico comparativamente menos desenvolvido, altamente dependente da produção de matérias-primas com um alto peso da indústria e menos eficiente em termos de uso da energia. Por exemplo, de acordo com estatísticas fornecidas pela IEA, enquanto o Uruguai incrementou a oferta de geração de fontes renováveis em cerca de 114% na última década, o Chile aumentou 84%, o Peru 70%, Brasil 60%, Colômbia 33% e Argentina 28%. Por outro lado, o aumento da oferta de geração de origem fóssil no mesmo período foi de 36% no Uruguai, 59% no Chie, 73% no Peru, 16% no Brasil, 4% na Colômbia e 16% na Argentina.

Na última década, os investimentos para promover o uso de energias limpas na América do Sul foram substanciais. Entre 2010 e 2019, os países sul-americanos investiram US$ 10 bilhões por ano em média no desenvolvimento dessas fontes, atingindo uma estimativa acumulada de US$ 100 bilhões em 2019. Em termos de desempenho por país, o investimento em fontes renováveis no Brasil apresentou uma forte recuperação em 2019 após ter sofrido uma queda em 2018. Já o Chile, no ano passado, quadruplicou o investimento em energias renováveis registrado em 2018, especialmente no que tange à energia solar. A Argentina também registrou um bom desempenho nos investimentos destinados a fontes renováveis durante 2019, em torno de US$ 2 bilhões. As energias renováveis também são importantes para a Colômbia, principalmente pela boa localização geográfica, permitindo-lhe capturar boa parte da energia solar que recebe. Finalmente, a promoção de investimentos em energias renováveis realizada pelo Uruguai permitiu que elas contribuam com 60% da matriz energética, tornando-o o país mais verde da região e um dos mais limpos do mundo.

Apesar dessas conquistas regionais importantes no campo das energias renováveis, que têm permitido ao continente sul-americano contribuir com 9% do total da potência global instalada de geração derivada dessas fontes e com 5% dos investimentos, a pandemia trouxe alguns obstáculos à continuidade das iniciativas energéticas e de infraestrutura que estavam sendo realizadas, mas não eliminou totalmente aquelas ligadas ao setor de energias renováveis. Mesmo a primeira fase da crise sanitária ter tido a China entre os principais afetados, que é um dos maiores produtores de tecnologias e equipamentos de geração de energia limpa, além de ser o país com maior capacidade instalada de geração renovável globalmente, as energias renováveis continuaram avançando graças aos projetos em andamento, à prioridade na geração nos sistemas energéticos globais, às boas condições oferecidas pela conjuntura e ao ímpeto global de manter o ritmo da transição.

A conjuntura econômica e social favorece uma mudança de paradigma no setor de energia, considerando a tendência crescente na demanda social vinculada às mudanças climáticas, à diminuição do crescimento dos setores ligados à extração e produção de fontes de energia tradicionais e, apesar do componente trágico, o impulso que a pandemia deu a esta mudança geracional e sem precedentes oferece uma oportunidade incomparável de realizar uma transição acelerada para economias com matrizes energéticas de baixo carbono, sustentáveis e resilientes.

Em suma, podemos observar como a região da América do Sul está evoluindo em termos de investimentos e de captação de fontes de energia renovável. O ano que ainda não acabou vai mostrar números preocupantes em termos de desempenho econômico para a América do Sul, em função da desaceleração imposta pela pandemia e da queda da demanda e dos preços das matérias-primas, porém é importante destacar que, neste contexto, os países da região não devem abandonar um plano de desenvolvimento econômico que continue considerando as energias renováveis como parte do seu eixo central. A América do Sul já fez muito nesse sentido. Da mesma forma, não devemos esquecer que a região é muito rica em recursos de gás, petróleo e minerais.

Portanto, fica claro que, enquanto o setor de energia tradicional continuar oferecendo oportunidades, grande parte do investimento irá para ele. O caminho para uma matriz energética mais limpa e baseada principalmente em energias renováveis não consiste em encontrar os meios para eliminar as fontes tradicionais no curto prazo, mas sim em regular a migração e substituí-las gradativamente por outras que tenham um desempenho mais eficiente e sustentável, reduzindo assim o impacto no meio ambiente. A pandemia trouxe consigo um grande desafio, mas também uma excelente oportunidade de mudança.

Manuel Fernandes é sócio-líder de energia e recursos naturais da KPMG na América do Sul.