O Estado existe para matar?

0 1

Marcio Guedes Berti

Alguns acontecimentos no Brasil nos últimos dias nos fazem refletir sobre o papel do Estado na atuação da segurança pública, e se ainda precisamos da Justiça.

Os fatos recentemente noticiados não retratam uma situação excepcional naquilo que diz com a atuação das polícias no enfrentamento da criminalidade, e lançam a dúvida sobre o papel do Estado, da Justiça, e do Direito.

A segurança pública, dever do Estado, é exercida pelas instituições previstas nos incisos I a VI, do art. 144, da Constituição da República, sendo que o Estado brasileiro tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e traz como direitos e garantias fundamentais o princípio da inafastabilidade da jurisdição, a vedação de juízos e tribunais de exceção e da pena de morte, o asseguramento, aos presos, do respeito à integridade física e moral, a observância do devido processo legal, o princípio da presunção de inocência, bem como a primazia da liberdade individual.

 No dia 24 de maio de 2022, no Rio de Janeiro, uma operação policial na Vila Cruzeiro contabilizou aproximadamente 25 óbitos.

No dia 27 de maio de 2022, no Sergipe, Policiais Rodoviários Federais, à luz do meio dia, aos olhares de cidadãos e de câmeras de celulares, mataram com resquício de tortura nazista, em uma câmara de gás improvisada no porta-malas de uma viatura, o cidadão Genivaldo de Jesus dos Santos, de 38 anos.

No dia 28 de maio de 2022, guardas da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo agrediram uma moradora de rua com cassetete, e jogaram spray de pimenta em seu rosto durante uma abordagem na região da Cracolândia.

No dia 30 de maio de 2022, em Cascavel, um policial militar matou um jovem de 18 anos suspeito de furtos/roubos em uma farmácia. Um vídeo divulgado pela imprensa não permite concluir se houve realmente confronto, e também não há nada além de suspeitas de que o jovem morto teria praticado furtos ou roubos anteriormente em outra farmácia.

Casos isolados? Não!

Em 07 de abril de 2019, no Rio de Janeiro, militares do exército fuzilaram o carro do músico Evaldo Rosa dos Santos com mais de 80 disparos, matando-o.

Em 06 de maio de 2021, no Rio de Janeiro, uma operação policial na favela do Jacarezinho contabilizou aproximadamente 28 mortos.

Para rememorar ainda mais o passado, em 31 de março de 1997, em Diadema, na Favela Naval, policiais militares mataram com disparos de arma de fogo Mario José Josino, de 29 anos, que estava sentado no banco de trás de um carro, com um tiro na nuca.

Em 23 de julho de 1993, no Rio de Janeiro, um grupo de policiais à paisana matou 08 meninos que dormiam em frente à Igreja da Candelária.

Em 02 de outubro de 1992, no extinto Complexo do Carandiru, em São Paulo, uma operação policial contabilizou 111 mortes.

Inúmeros outros casos poderiam ser rememorados; inúmeros!

Mas e as vítimas, afinal, eram realmente culpadas de algo? Nunca saberemos! Não foram julgadas pela justiça! Sequer foram formalmente acusadas; sequer tiveram a chance de se defender! Foram, em verdade, acusadas, julgadas, e executadas sumariamente pelo Tribunal de Rua à pena de morte!

Não se desconhece que a violência e a criminalidade estão aí, na pauta do dia, porém, não se pode admitir que a justiça seja substituída pela violência estatal; não se pode admitir que os julgamentos judiciais sejam substituídos pelos julgamentos sumários e de extermínio dos Tribunais de Rua!

Vivemos em um Estado Democrático de Direito, e enquanto sociedade não podemos compactuar com a violência, seja ela proveniente da criminalidade, seja ela proveniente do Estado.

O Estado não existe para matar! Temos o Poder Judiciário justamente para julgar as pessoas que são acusadas do cometimento de crimes, e para isso existe o devido processo legal.

Aceitar esses fatos de violência estatal com normalidade é demonstrar que a sociedade, em pleno 2022, é mesmo movida pela banalidade do mal, nos termos propostos por Hannah Arendt, no sentido de que em face da massificação social, e com o surgimento de uma multidão incapaz de fazer reflexões, as ordens são aceitas e cumpridas sem qualquer questionamento.

– A polícia matou?

–  Sim, matou!

– Ah, mas o morto devia ser algum vagabundo! Um CPF a menos!

Perdemos, enquanto sociedade, a capacidade de nos indignarmos com a violência do Estado, e não conseguimos assimilar que não se combate violência com mais violência, e que o problema da criminalidade somente será resolvido quando as suas causas forem realmente observadas pelo Estado.

Como bem disse o Ministro Sebastião Reis Júnior, do STJ, em entrevista à Conjur: “Matar e prender não diminui a criminalidade. Essa é a política que temos visto nos últimos tempos e, como eu já disse, a criminalidade está sempre em um crescendo. O Estado precisa profissionalizar o combate à criminalidade. Tem que procurar usar medidas de inteligência eficazes; tem que agir de forma coordenada e, sempre, tem que visar a preservação e não o fim da vida. A polícia não pode ser treinada a matar, machucar, torturar, bater. A última chacina ocorrida no Rio (Vila Cruzeiro) é um exemplo do que não se deve fazer. Dizem as notícias que era uma operação planejada por vários meses…. mas como uma operação planejada pode causar a morte de mais de vinte pessoas? Ou o planejamento foi falho, ou não houve planejamento ou o planejamento foi para matar e não para prender.”

Talvez, hodiernamente, a pena privativa de liberdade não seja a maior das “violências institucionais”, mas sim o extermínio, ou seja, a pena de morte sumariamente decretada pelos agentes de segurança pública.

E já antevendo as críticas que receberei por esta manifestação, valho-me das lições de Schopenhauer: “Semelhantes aos carneiros que saltam no prado, enquanto, com o olhar, o carniceiro faz a sua escolha no meio do rebanho, não sabemos, nos nossos dias felizes, que desastre o destino nos prepara precisamente a essa hora — doença, perseguição, ruína, mutilação, cegueira, loucura, etc.”

Marcio Guedes Berti é advogado e professor universitário de Cascavel, mestre em Filosofia

Deixe um comentário